Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

sábado, dezembro 01, 2007

Cultivando

Não será fácil apanhar um “leprechaun”. E mais difícil ainda é sacar-lhe o pote de ouro. Os “leprechauns” são criaturas de baixa estatura, vestidas por John Galliano, com casaca e calças meia-perna verdes, camisa e meias brancas, e grandes fivelas no chapéu, cinto e sapatos. Trabalhadores por conta própria acumulam invejável fortuna na indústria do calçado. Desconfiados das fusões amigáveis dos banqueiros enterram-na dentro de potes nas matas. Quem conseguir capturar um, tem que mantê-lo sob vigilância apertada, como um agente do SIS, até ele revelar de livre vontade o esconderijo do precioso cântaro. Não vale a pena torturá-lo, pois nesse caso confessará lugares fantasiosos, como sucedeu com um agente da CIA, que viajou até Espanha para escavar junto do poço, na granja do Pin y Pon, quando foi informado por José Maria Aznar, da inexistência de tal quinta nas terras de Castela. Presente na reunião, o primeiro-ministro português de pronto jurou, pelo Imaculado Coração da Virgem Santíssima, que a tinha visto nuns papéis. (No sul da Índia foi filmado o vídeo “Sunshowers” da M.I.A. – numa alusão à expressão “missing in action” é o nome artístico de Mathangi “Maya” Arulpragasam, nascida em Londres, filha do militante tamil Arul Pragasam. Com seis anos voltou com a família ao Sri Lanka, mas a guerra étnica obrigou ao regresso da mãe, e os seus dois irmãos, à Inglaterra, enquanto o pai desaparecia em combate contra o exército do Governo cingalês).

As elites dos países desesperadamente procuram um “leprechaun” para enriquecerem o seu povo. Quando isso sucede, oh! felicidade, a civilização saltita e acelera. Costuma-se dizer que as algibeiras cheias são boas conselheiras. Um povo enricado almeja educação, cultura, arte, design e coisas para colocar no chão ou pendurar nas paredes. Certo dia os galeristas do Baltic Center for Contemporary Arts, em Gateshead, Inglaterra, enfrentaram a ancestral questão do ser ou não ser arte. Nestes dilemas, mandam os manuais de Estética que se chame a Polícia. Assim fizeram! Entretanto, algures num clube de Londres as The Pipettes tocavam “Pull Shapes”. (The Pipettes é um grupo pop revivalista formado em Brighton, em 2003. “Pull Shapes” significa em calão inglês uma forma particular de se mover na pista de dança. E o vídeo foi inspirado no filme “Para Além do Vale das Bonecas”, um clássico de 1970, do mítico Russ Meyer)

A galeria expunha uma instalação de Nan Goldin, chamada “Thanksgiving”, composta por 149 fotografias dos seus amigos a usar drogas, a masturbar-se, a fazer amor etc. e tal. Entre elas estava “Klara and Edda belly-dancing”. Uma foto de duas miúdas a brincar na cozinha. Uma em pé, vestida imitando uma bailarina oriental, dança sobre a outra que está deitada no chão nua. A foto não é novidade. Foi comprada por Elton John em 1999 e já foi exibida em muitos países, inclusive no nosso querido Portugal. No entanto, os polícias confiscaram-na para verificar a sua “porno-infantilidade”. Se, segundo recentes leis, é pornografia infantil, ou outra coisa qualquer como… uma normal cena do quotidiano de um lar com filhos. (A normalidade saiu pela janela da sociedade onde “Everybody’s Gone To War”, de Nerina Pallot).

Goldin é conhecida como foto-cronista da vida de alcoólicos, drogados e doentes com SIDA. Realidades chatas de ver mas que podem ser tratadas com indiferença. Não afectam directamente a “boa consciência” das sociedades ricas que pagam especialistas para limparem esse lixo do campo de visão. Todavia, ver sexo em todo o lado – quando se mastiga os Cheerios, veste a roupa Alexander McQueen ou segura o varão no Metro – poderia parecer uma vingança de Freud. Que afinal o velho psicanalista estava certo. E, que, o Inconsciente (ou Id), a massa informe de pulsões e desejos sexuais reprimidos, irrompe no Consciente e determina a vida humana. Nada dessas taradices! A Humanidade não está carregadinha de neuroses, psicoses ou outras nozes, porque a energia sexual (libido) está a ser mal desviada do Princípio de Prazer para o Princípio de Realidade. A riqueza das nações é que acertou as prioridades das populações curadas por um exército de peritos. Com Kant ou Jean-François Lyotard, a beleza reside no observador e não na coisa observada. E como o observador é mentalmente são, chocantes são crianças nuas, porém fotos de crianças mortas nas guerras legítimas são banais, artísticas, estéticas, prioritárias candidatas a prémios de fotojornalismo. (“Beds Are Burning”, e não só por causa da ecologia, cantam os Midnight Oil. O vocalista Peter Garrett, com a eleição do executivo trabalhista de Kevin Rudd, é o actual ministro do Ambiente australiano).

A ONU criou mais um tacho – o Representante Especial para a Violência Contra as Crianças. Este bom emprego foi aprovado pelo Comité dos Direitos Humanos da Assembleia-Geral por 176 votos a favor e o voto contra dos Estados Unidos. Os sobrinhos do tio Sam enriqueceram mais do que os outros, logo, perceberam que o interesse das crianças não se defende com observadores e relatórios. Nos países ricos é difícil consertar a funcionalidade das famílias para que cuidem dos filhos. Cada elemento do casal quer aproveitar a vida que é curta. Há muita PlayStation para jogar. Muito Martini “shaken not stirred” para beber. Muito centro comercial para palmilhar. A solução é o recrudescimento das leis. A ministra francesa da Justiça, Rachida Dati, propõe a reclusão dos condenados por pedófila em centros especiais depois de cumprirem a pena. Se for complementado com a pena de morte o problema fica resolvido para sempre. Nos países pobres, muitas vezes, é imperativamente categórico matar os adultos e as crianças vão-se como danos colaterais. E, a infância dos sobreviventes é efémera. Num piscar de olhos desaparece... em mais um soldado. (“War Pigs” pelos The Dresden Dolls, duo de Bóston formado por Brian Viglione e Amanda Palmer que classifica o seu som como “cabaret punk brechtiano”. A canção é uma versão dos Black Sabbath).

O enriquecimento do planeta tem provocado alterações cromáticas. O dinheiro liberta os bons sentimentos solidários em todas as classes profissionais. Durão Barroso, na qualidade de Presidente da Comissão Europeia, foi a Timor levar 63 milhões de euros para despesas correntes de democracia e direitos humanos. Ramos-Horta agradeceu propondo, o político da “Europa dos resultados”, para o prémio Nobel de 2008. É um verdadeiro chupa-chupa comprado na “Candy House”, do grupo punk japonês, Thee Michelle Gun Elephant.

No nosso querido Portugal a riqueza foi trazida pelos “cluricauns”. São primos dos “leprechauns”, cuidam das adegas e têm uma vida gémea da nossa. Passam os dias nos copos, são sociáveis e hospitaleiros. Quando estão borrachos montam carneiros, ovelhas e cães na galhofa. A nossa elite dirigente encurralou um na Ginjinha do Rossio e a empatia foi instantânea. Ele transferiu o pote de ouro online para um Banco sólido e foram todos comemorar na Casa do Alentejo com rojões e Quinta da Pinheira tinto. Desde aí a cultura tem marcado a sociedade lusa como explica a maior poetisa portuguesa Adília Lopes: “Só depois de ler / Barthes / é que Camila / ficou a saber / que o dedo da masturbação / é o médio / até aí tinha usado / sempre / o indicador / experimentou também / o polegar / e viu que todos serviam / meu menino / seu vizinho / pai de todos / fura bolos / mata piolhos”. O savoir faire digital e intelectual espraiou. No caso de um cozinheiro despedido, por um hotel, os Srs. Drs. juízes do Tribunal da Relação de Lisboa acordaram: “ficou provado que A. é portador de HIV e que este vírus existe no sangue, saliva, suor e lágrimas, podendo ser transmitido no caso de haver derrame de alguns destes fluidos sobre alimentos servidos ou consumidos por quem tenha na boca uma ferida”. Um cirurgião infectado com o mesmo vírus foi escrutinado pelos seus pares. Os Srs. Drs. médicos concordaram que os riscos de transmissão aos anestesiados na mesa de operações é perto do zero. O médico pode ir de férias na neve. O cozinheiro não. (“Fallen Snow” do grupo feminino de Brooklyn Au Revoir Simone. Este nome é uma frase do filme “Pee-Wee’s Big Adventure” de Tim Burton).

O maior poeta português avisava: “É sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossível fazê-lo milagrosamente” – Herberto Hélder in Photomaton & Vox. Acertou! Pelas águas límpidas caminhamos sem necessidade de intervenção divina. A funcionária da Junta de Freguesia de Vitorino de Piães, Ana Maria Brandão, há três anos de baixa com doença incapacitante degenerativa, recebe a cartinha da Caixa Geral de Aposentações para regressar ao posto de trabalho. Passou um dia sentada e encostada a uma parede pois não tem autonomia de movimentos. O ministro das Finanças gastou saliva: “ninguém pode ficar indiferente e insensível”. Qual herói Beowulf em três dimensões anuncia que ela iria entrar outra vez de baixa até a CGA reapreciar o caso. Mais uma junta médica depois, a funcionária está apta para todo o serviço, como na tropa. Em Portugal não há “Judge Harsh Blues” (de Furry Lewis). São todos bonzinhos profissionalmente e… arredores.

4 Comments:

  • At 10:06 da tarde, Blogger Armando Rocheteau said…

    É para mim um luxo passear-me por aqui. Dá gozo ler os teus textos.

     
  • At 8:03 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    A imagem dos juízes da Relação de Lisboa está artística. Boa para qualquer escritor português. Gostei da frase “sangue, saliva, suor e lágrimas. A saliva é um acrescento poético, julgo eu, na antiga frase. Churchill dizia sangue, trabalho, suor e lágrimas.

    Se o cozinheiro descascar umas cebolas, a sala de jantar fica infectada com SIDA. Ou, se, a mulher lhe puser os cornos e for, lacrimante, preparar o cappuccino de caril de madras com citronela, camarão e talharins chineses.

    Os nossos juízes são um prato. Sempre politicamente correctos. Não querem dizer: “não convivemos com sidosos e ponto final. Temos medo. Não vá o diabo tecê-las”. Dão a volta por um palavreado “científico” porque vivemos numa época de tolerância e não é de bom-tom discriminar. Acho que quanto mais ciência melhor está o mundo.

     
  • At 2:20 da manhã, Blogger Ana Cristina Leonardo said…

    Não perco estes resumos da semana. Acho que ficariam bem sob o título, a realidade, agora a cores.

     
  • At 4:55 da manhã, Blogger Táxi Pluvioso said…

    É verdade. E o ministro da Saúde dá ajuda preciosa na paleta das cores. Numa visita à Escola Secundária da Portela, para alumiar tolerância e os putos não desatarem à pedrada nos colegas com SIDA, afirmou feliz: “a reacção da Ordem dos Médicos foi excelente. A Ordem tomou a posição correcta sobre essa matéria no pouco tempo de que dispunha”.

    Não disse palavra sobre o cozinheiro. Creio que ele confia na distinção entre uma ferida na boca e um corte com um bisturi. Uma é produto da natureza e o caos pode acontecer. A outra é obra humana onde prevalece a racionalidade.

     

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