…. mas os mouros é que vinham cobrar
Acolchetado na memória do povo, o tributo de cem formosas virgens, consentido pelo “infame rei Mauregato”, para proteger as goelas cristãs do alfange do mafamético Infiel [1], ainda faz estremecer sob a exequibilidade de novas cobranças. Escarmentado, o povo, receia tributo sem virgens [2], de vencimentos, pensões, subsídios, suspenso das letras de pagamento dos contemporâneos credores. Já não se visam gasganetes, nem os cobradores são “bichos papões” e, para que o povo, outrora invejado pela Irlanda [3], não desfaleça de fome, para aumentar-lhe a competitividade, boamente, em breve, abrirá em Lisboa o bodo do FMI. Alimentados, vestidos e calçados, a produtividade de economistas e teóricos expandir-se-á. Cantarão de galo. A enxurreira intelectual retornará ao leito. Teixeira dos Santos, demitente ministro das Finanças: “só um comentário mais técnico. A estabilidade e a confiança no sector financeiro são um bem precioso e são um bem público, e temos que entender como um bem público. E como bem público, nós temos obviamente que suportar o custo que a manutenção desse bem público implica” [4]. Tenho uma impressão [5]! Engendrando pensamento estratégico deste quilate, o ministro averba ou adverbia ou substantiva um futuro tão delicioso como lamber um Magnum, e estaciona Portugal no prestígio internacional again: – ainda veremos o assisado e industrioso João Vale e Azevedo, que na Inglaterra responde pelo nome de Jonathan Vale, a organizar o casamento real: só a “última noite de solteira de Kate vai custar 5 700 €”.
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[1] Almeida Garrett em “Os Figueiredos”: “Portugal e o mais de Espanha que obedecia aos reis de Astúrias e Leão, pagava aos mouros o indigno tributo das cem donzelas, que todos anos se escolhiam de entre as mais formosas, desde que o infame rei Mauregato se obrigara a este vergonhoso feudo para obter a proteção do rei Abderramão de Córdova. Faziam as autoridades cristãs a derrama pelas terras, mas os mouros é que vinham cobrar”.
[2] A riqueza do mundo já não é ouro, virgens ou dinheiro, é dívida. Para se precaver de novas “crises”, os desbocados políticos gritaram: “regulação! mais regulação!”, mas quem manda tem um método mais seguro: assegurar os meios de que os empréstimos são pagos. Umberto Calvini, personagem do filme “The International” (2009): “não. Não. O IBBC é um Banco. O objetivo deles não é controlar o conflito, é controlar a dívida que o conflito produz. Sabem, é que o verdadeiro valor de um conflito, o verdadeiro valor, está na dívida que ele gera. Controla-se a dívida e controla-se tudo. (…). Isto é a própria essência da indústria bancária para nos tornar a todos, quer como nações ou indivíduos, escravos de dívidas”.
[3] Em 1938, Richard S. Devane: “saindo do imenso deserto do chamado liberalismo, com o seu caos religioso, social e financeiro, Salazar, qual novo Moisés, conduziu o seu povo até à bela Terra Prometida há tantos anos cantada e sonhada por poetas e patriotas portugueses. Há quantos séculos cantam os nossos poetas gaélicos e anglo-irlandeses as penas da Níobe das nações? (…). Hoje Portugal ergue-se com dignidade do pó onde há longo tempo jazia – enquanto a Irlanda permanece vergada sobre os joelhos. Não terá a ressurreição de Portugal uma lição para a Irlanda?”, no Irish Ecclesiastical Record, citado por Filipe Ribeiro de Meneses na biografia “Salazar”.
[4] O demitente primeiro-ministro José Sócrates resguardava este “bem público” com o Orçamento de Estado de 2011: “este é o Orçamento que protege o país daquilo que são as consequências da turbulência financeira internacional. Este Orçamento abriga Portugal, e dá segurança às empresas e às famílias, para que elas possam obter crédito, pra que elas tenham condições de financiamento, que permitam fazer investimento. É por isso que este Orçamento é um Orçamento que defende o crescimento e o emprego”.
[5] “I Got a Feeling” é o Hino Nacional do século XXI. Tocado por Noa, Violin Player: “o meu nome é Noa, toco violino, faço improvisação sobre house music”; de seu nome Lia Gesta: “Noa, porque quando comecei com o projeto da música, com o violino, eu ‘tava a dar aulas na altura, e achei conveniente haver uma personagem unicamente pra música, que depois acabei por registar o nome, e acabou por abrir outros caminhos, noutras áreas, nomeadamente na Literatura. E claro que o Lia, como nome próprio, mantém-se sempre, e, tanto, num nome, como no outro, eu olho sempre”; presença noturna na sua tasquinha “O Barqueiro”, em frente da Alfandega do Porto; “We Are the People” (dos Empire of the Sun) ☼ com DJ Rui Tomé ☼ a embelecer poesia.
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E… a indústria financeira é o único “bem público” que resta. A ideia de um “bem comum”, disponível a todo o cidadão, foi-se e não há martelo que a reviva. A água será talvez o último bem comum – algo a que todo o ser humano ou animal teria direito – mas, por ser um bem tão valioso como o petróleo, os empresários forçaram a sua retirada de bem comum para o converter num produto comerciável. Outros bens, propriedade de todos, houveram: um dos primeiros, a agricultura morreu e privatizou-se como exploração agrícola: na agricultura, cultivava-se a terra nos ciclos da Natureza; na exploração agrícola, o agricultor compra as sementes à Monsanto ou, se não as comprou, tem que devolver sementes e plantas, caso elas voem para os seus terrenos. A empresa emprega uma “gene police”, para verificar o cumprimento dos contratos dos seus produtos, e um batalhão de cientistas a viajar pelo mundo, patenteando plantas, que venderão como propriedade privada: encarecendo a ida ao “Kebab Shop” [1].
A privatização total é o modelo: a Myriad Genetics patenteou o gene BRCA1, origem de vários cancros genéticos, ou seja, quem quiser usar a sequência terá que pagar direitos e, com a privatização do ADN, a Vida será propriedade intelectual: e pagar-se-á pelo body type. A linguagem também é privatizada: Charlie Sheen flipou e desatou a desbobinar frases incongruentes: “Vatican Assassin,” “Tiger Blood,” “Rock Star From Mars,”, das quais registou os direitos. Se o Futre lhe imitasse a iniciativa, quando alguém dissesse “voos de charters” ou “o melhor jogador chinês da atualidade”, desembolsava-lhe para o bolso. Expedientes para impor a privatização são vulgares: a criação de listas de espera nos hospitais, e abertura de um “mercado da saúde” aos empresários privados, que esvaziarão essas listas, em nome da qualidade dos cuidados de saúde, e a troco de justa compensação monetária; a saúde é um bom negócio, e por isso não será um bem comum, um direito de todos. E a maior trapaça de todas: o endividamento, que pôs os Estados nas mãos dos banqueiros. E, o Estado na mão do Banqueiro significa hasta pública de tudo o que dê caroço.
O Comunismo fracassou, por ser um regime para santos e não para homens, mas eis que o capitalista moderno descende a escada do céu como salvador, como homem honesto, de coração aberto, solidário, o homem bom, o puro de Rousseau ou Voltaire. António Saraiva, presidente da Confederação da Indústria Portuguesa: “o peso burocrático que é hoje exigido às empresas em termos legislativo, ambientais e outros é uma carga enorme que a realidade empresarial portuguesa não tem forma de suportar. Agilizem as coisas. Tornem-nas simples e nós faremos o resto. Nós levaremos o país ao desenvolvimento, ao crescimento, mas ajudem-nos, não complicando. Menos Estado, melhor Estado”.
O bem comum finou-se, exceto a “indústria financeira”, será o único “bem precioso”, o único “bem público” e “temos obviamente que suportar o custo que a manutenção desse bem público implica”. Na próxima “crise” os contribuintes serão chamados a resgatar este precioso bem para que, quando os sequazes de Mafoma, de Lutero, de Siddhartha ou de São Pedro vierem cobrar, lhes paguem com o seu próprio dinheiro, e não, por engano, com o dinheiro de algum empreendedor privado.
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[1] The Scarletz são “Bryony Jobes (a tímida misteriosa) Clare Martyne (a ruiva que faz caretas) Katiya Borlant (a ligeiramente intelectual) Tahnee Lee (a esquisita que usa chapéu)” ☼ canal YouTube.
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John Updike escanhoou extinta pelagem: “cada cabelo é precioso e individual, pois cumpre uma função distinta no conjunto: louro até à invisibilidade onde a coxa e o ventre se juntam, escuro até à opacidade onde os ternos lábios pedem proteção, forte e avermelhado como a barba de um guarda-florestal sob a curva do ventre, negro e ralo como o bigode de um Maquiavel onde o períneo retrocede a caminho do ânus. A rata a que me refiro modifica-se ao longo do dia e consoante a textura das cuecas. E tem os seus satélites: essa caprichosa linha de penugem que ascende até ao meu umbigo e se confunde com a cor tostada da pele, os beijos de pêlo suave na parte interior das coxas, a lanugem cálida que adorna a linha divisória do traseiro. Âmbar, ébano, avermelhado, baio, castanho, limão, avelã, leonado, tabaco, alfena, bronze, platina, pêssego, cinza, chama e rato do campo. Estas são algumas, poucas, das cores da rata”.
– “3D Sex and Zen: Extreme Ecstasy” (2011): “conceituado académico da dinastia Ming, Wei Yangsheng acredita em, como a vida é curta, devemos procurar o prazer sexual supremo, enquanto vivos”: o primeiro filme erótico chinês em 3D com algumas atrizes AV Idols (= “ídolos do vídeo adulto”) no elenco, como Hara Saori; pornográfico, nos padrões americanos, desancou o “Avatar” (2009) em receitas de bilheteira: “no Ocidente a pornografia é uma indústria multimilionária, a maior parte do dinheiro arrecadado nos DVDs e online”, nos cinemas, é falência certa da sala. É um remake de “Sex and Zen” (“O Tapete de Oração da Carne”, em italiano: nome da novela erótica do século XVII, remota origem do seu argumento), de 1991, com a mamalhuda Amy Yip; a fúria do 3D também contagiou Tinto Brass que converte o seu “Calígula” (1980). – Mascotes que roubam a cena: o Huckleberry Hound, o Mutley ou as melhores amigas da Paris Hilton. – “The Challenge of the Lady Ninja” (1983): duelo entre Elsa Yang Hui-Sang e Yan Sau-Lee; Wu Hsaio-Hui uma heroína que explode nas cores portuguesas. – “Twilight” (2008), sequelas e livros promovem perplexidades na obscura não-ciência da Psicologia: “para os jovens tudo é tão estranho, e não se pode dizer, realmente, porque se reage às coisas – é um período difícil para um ser humano”, diz Maria Nikolajeva, professora de Literatura de Cambridge, “nós não sabemos exatamente como a Literatura afeta o cérebro, mas sabemos que o faz. Algumas novas descobertas identificaram zonas no cérebro que respondem à Literatura a à Arte”. Será Bella Swan um bom modelo? Para Nikolajeva “isso é muito deprimente”, os livros não endossam “a posição da mulher como uma criatura independente”. Opinião servil das modas “científicas” de uma árida mestra de sacristia universitária, que não é a de Caitlin Flanagan: “Bella é uma heroína antiquada: estudiosa, inteligente, corajosa, atenciosa com as emoções dos outros, e naturalmente competente nas artes domésticas (ela imediatamente se encarrega das compras no supermercado e da cozinha na casa do pai, e há inúmeros relatos, estranhamente atraentes, dela a confecionar o jantar – embrulhar duas batatas em papel de alumínio, metendo-os num forno quente, a marinhar um bife, a fazer salada verde)”. Edward Cullen, e a sua vampírica família, habitam arejada casa, e não insalubres caves, o que facilita o trabalho de uma dona de casa humana. A série originou produtos de consumo e muita zombaria: de Olivia Nunn; se Buffy, a caçadora de vampiros, lhes espetasse uma estaca, a localidade de Forks, no estado de Washington, “imersa num quase permanente manto de nuvens”, desassombraria; o trailer de “New Moon” (2009) causa peculiares fenómenos nas adolescentes; em vez de Bella, com hambúrgueres; e o Musical. – “Les Diaboliques” (1955): “o filme é baseado na novela de Pierre Boileu e Thomas Narcejac ‘Celle qui n’était plus’”. Alfred Hitchcock falhou a compra dos direitos por umas horas, “posteriormente, Boileu e Narcejac escreveram ‘D’Entre les Morts’, especialmente para Hitchcock, que o filmou como ‘Vertigo’ (1958)”; remake em 1996, apenas “Diabolique” com Sharon Stone e Isabelle Adjani. – “Sex Galaxy” (2008): “cem anos no futuro, devido ao superpovoamento e aos efeitos do aquecimento global, o sexo foi declarado ilegal na Terra. Quando uma tripulação de astronautas ouve falar de um distante planeta, habitado por insaciáveis criaturas do sexo feminino, que existem apenas para satisfazer os desejos do homem, decidem fazer um desvio da sua missão de rotina, em busca do mítico sistema solar, conhecido com Sex Galaxy”; vende-se como o primeiro filme 100% reciclado, pois foi realizado unicamente com imagens do domínio público, como cenas de “Voyage to the Planet of Prehistoric Women” (1967), de Peter Bogdanovich (como Derek Thomas), que fora realizado com cenas de “Voyage to the Prehistoric Planet” (1965) de Curtis Harrington que, por sua vez, tinha sido inserido várias cenas, com atores americanos, no filme russo “Planet Bur” (1962); “Sex Galaxy” é “uma longa-metragem mashup de imagens de arquivo livres de direitos, a extrovertida comédia de ficção científica entrança strippers, marcianos, foguetões e robots numa semi-coerente brincadeira”; a privatização da Cultura abolirá, “cem anos no futuro”, as imagens livres de copyright, e os vídeos dos These United States.
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[ToToM – produtor francês, antropófago dos sons dos outros (1), que se introduz no MySpace: “eu sou ToToM produzo mashups, conhecidos como bootlegs, cujo princípio consiste em misturar duas músicas que parecem, à primeira vista, completamente díspares. Zebra é muito bom neste jogo e, em geral, aqueles que estão no meu top friends têm um certo talento para a coisa” – em 2007 editou “Boo+wArds”: “hip-hop ou R&B a capella sobre canções de rock clássico” ☼ em 2008 sociabilizou o bicho Trent Reznor na trilogia “Bootleg is Resistance”: “álbum feito em torno de canções dos Nine Inch Nails” do CD ‘Year Zero’” ☼ em 2009 limpou teias de aranha de umas ossadas (2) no álbum “Dylan Mashed”: “é uma mistura única de velho e novo, combinando o lendário cantor/compositor com artistas que vão desde Eagles of Death Metal, Gorillaz e Pixies”: o site ☼ canal YouTube: “I’ve Told Every Little Pumpkin” ☼ “Pigs Must March!” ☼ “Echoplex 2”.
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(1) Perigoso labor, pela voracidade de dinheiro, dos políticos americanos que, sem ele, não são eleitos. Sobre a forja em canções de outros, escreveu o professor Lewis Hyde: “Bob Dylan retirou de um rico filão de velhas canções folk a maioria das suas primeiras canções” nos anos 60. Nos anos 90 os jazigos privatizam-se. No final da década, a Disney seduziu o congressista Sonny Bono – restolho da indústria musical após divórcio da Cher – para que propusesse uma lei, estendendo os direitos de autor por mais 20 anos, para que o seu rato marca registada ®, gerador de fortunas, não caísse no domínio público. Que o Congresso, absorto pelas proezas orais de Monica Lewinsky no Bill Clinton, aprovou em 1998. Esse ciumento Congresso também ratificou o Digital Millennium Copyright Act, consentindo aos donos de copyright cacetearem os infratores sem chatices de juízes e tribunais. Segundo Hyde: “os direitos de autor e as leis de propriedade intelectual colocaram, na sua estimativa, cerca de 75% da nossa ‘herança cultural’ – filmes, música, arte – nas mãos de privados”.
(2) Em 1963, novo darling de viola a tiracolo da canção de protesto americana, no Festival Folk de Newport de 65 eletrificou-se, horrorizando os puristas do folk, contabilizando, na venda de discos, os fãs do rock: dizem que saltou do acústico para o elétrico por conversas com Lennon. Dylan criticava as letras dos Beatles: “vocês não têm nada a dizer” e Lennon explicava-lhe que “ele não tinha som”. No pórtico da arca de Noé perguntaram-lhe: por que 30 denários se venderia? e ele respondeu: por “roupa interior de senhora” e fez-se a sua vontade pela Victoria’s Secret; mas “a voz de uma geração” come muitas últimas ceias e patrocinou o iPod + iTunes, o Cadillac Escalade ou a Pepsi. Safa-se ser um picuinhas na cedência de direitos, das suas melodias, para publicidade, poupando-nos os ouvidos, ou ser boa inspiração para a galhofa, no falso Bob Dylan’s Subterranean Home-Style Blues Buffet: “prato do dia sushi especial: desolation roe” = “ovas desolação”].